Em um laboratório flutuante sobre um canal de Copenhague, na Dinamarca, fungos e bactérias são usados em experimentos para maturar e fermentar alimentos.
As amostras ficam separadas por categorias: algas envelhecidas, vinagres de toda sorte de ervas e carnes quase em processo de putrefação. Ali, trabalham botânicos e zoologistas. Mas quem comanda são chefs de cozinha. O Nordic Food Lab (Laboratório de Comida Nórdica), fundado em 2010 por Rene Redzepi e Claus Meyer, proprietários do Noma — restaurante em Copenhague que de 2010 a 2012 foi o número um no ranking da Restaurant, prestigiada revista inglesa do ramo —, é um dos representantes de uma tendência da culinária de luxo: a microbiologia. “Somos cozinheiros obstinados, com metodologia científica”, afirma Ben Reade, chefe do Nordic Food Lab.
Depois da gastronomia molecular — que usa a química para modificar a textura e apresentação dos alimentos e que lançou para o mundo nomes como o do catalão Ferrán Adriá, do restaurante El Bulli —, os fungos e bactérias são agora foco de chefs de renome.
Além de Rene Redzep, os premiados Chris Ford, do Rogue 24 (Washington DC), e David Chang, do Momofuku Säam Bar (Nova York) — que integra a lista dos 50 melhores do mundo pela Restaurant —, criaram seus próprios laboratórios de experimentos.
A ousadia vai longe: de carnes que permanecem cruas em refrigeradores por mais de 100 dias a legumes enterrados por meses. Sem contar as parcerias com cientistas de universidades como Harvard e Sudeste Dinamarca. Os resultados viram pratos vendidos a não menos de US$ 40. Conheça a seguir o maravilhoso mundo dos micróbios na cozinha.
TEM ALGO DE PODRE AÍ
Não adianta torcer o nariz. Há séculos consumimos alimentos em que fungos e bactérias são essenciais na formação do sabor, como vinhos, pães, cervejas e carnes secas. Algo que a humanidade aprendeu a fazer empiricamente. “O que sabemos até hoje sobre o papel desses micro-organismos na alimentação é só a ponta do iceberg. Tem muito para vir à tona”, afirma Herold McGee, autor do livro The Art of Fermentation (A Arte da Fermentação, sem edição no Brasil).
O controle de quanto tempo um produto dura até apodrecer e qual a melhor fase para consumi-lo tem interessado os pesquisadores do Nordic Food Lab. Eles estudam processos de maturação e cura de carnes, comuns na Escandinávia. “Nossa região é conhecida por sua charcuteria [técnica para fabricação de embutidos]. Mas usa-se muita defumação e salga, o que altera o paladar”, diz Ben Reade, chefe do laboratório.
A saída foi importar fungos utilizados nas ilhas do Atlântico Norte para conservar carnes. “Trabalhamos para identificar as espécies e de que forma agem criando uma camada externa que protege o alimento, mantendo sua maciez e gosto.”
A atuação dos fungos na produção de vinhos locais também já foi investigada. Amostras de uvas com Botryotinia fuckeliana foram levadas para o laboratório a fim de entender como esses micro-organismos contribuíam para o sabor do vinho doce feito com elas. Depois de análises microscópicas realizadas pelos botânicos do grupo, concluiu-se que o fungo produz furos microscópicos na casca da uva, fazendo com que se desidrate, concentrando mais açúcar. A ideia agora é colocar o Botryotinia fuckeliana para atuar em frutas silvestres — como cerejas e mirtilos — para acentuar sua doçura. “Um mundo fantástico vai se abrir à medida que entendermos como micro-organismos transformam sabores”, diz Reade. “Isso demanda abordagem científica, o que tem tomado a gastronomia.”
A GOSTO: Reade, do Nordic Food Lab, que investiga maturação de carnes e fermentação de frutas, por exemplo
TERRITÓRIO DOS MICRÓBIOS
Até 2015, os microbiologistas Rachel Dutton, Benjamin Wolfe e Julie Button, da Universidade Harvard, pretendem sequenciar o DNA de micro-organismos encontrados em 160 diferentes cascas de queijos — como Cheddar, Stichelton, Saint Maure e Corsu Vecchiu — para descobrir quais os melhores fungos para a produção de cada um e, quem sabe, chegar a novas receitas.
A tecnologia usada é de última geração: uma máquina de sequenciamento genético age como um scanner lendo os dados do DNA e os salvando num HD. “Assim conseguiremos analisar a diversidade microbiológica de centenas de alimentos fermentados ao redor do mundo por uma fração dos custos do que era há cinco anos”, afirma Wolfe.
Pouco tempo depois do anúncio da pesquisa — iniciada em 2010 como a primeira de padrão global a investigar a interação entre micróbios e comida —, os cientistas passaram a receber no laboratório pacotes com grãos e pães, enviados por chefs e cozinheiros, para serem analisados. Jim Lahey, mestre padeiro da Sullivan Street Bakery, em Nova York, foi um dos que tentaram ajuda para replicar nos EUA um pão que tinha provado na Toscana.
Mas quem emplacou um projeto em parceria com os cientistas foi o americano de origem coreana David Chang. Em seu Momofuko Säam Bar, Chang havia tentado fazer um lombo de porco defumado com a mesma técnica do kastsuobushi, tradicional prato japonês em que o bonito (tipo de atum) é fervido, defumado e colocado numa solução com Aspergillus glaucus — espécie de fungo muito usada na cozinha nipônica. Depois, é deixado em descanso para fermentar por cerca de dois meses. Passado o período, ainda é submetido a um extenso processo de envelhecimento e secagem, que inclui exposição ao sol e pulverização de Aspergillus glaucus — esses micro-organismos drenam umidade. O resultado são lascas bem duras e crocantes de peixe de sabor concentrado.
Ao tentar reproduzir a receita com a carne de porco, o resultado ficou bem longe do esperado. “Vimos o quão ignorantes éramos nos processos de microbiologia aplicada à comida”, afirma Daniel Felder, chefe de pesquisa e desenvolvimento do Momofuko Culinary Lab, a moderna cozinha-laboratório que Chang criou nas redondezas de seu restaurante.
Amostras da carne desidratada e “contaminada” com Aspergillus glaucus foram, então, enviadas para o Centro para Sistemas de Biologia de Harvard. Lá, os cientistas mapearam geneticamente os micro-organismos que estavam na carne para descobrir do que se tratavam: o DNA deles era dividido em milhões de partículas lidas por máquinas. Depois, um algoritmo de montagem de genoma colocava tudo na ordem original de volta. Os resultados mostraram que um tipo de fungo disperso pelo ambiente do laboratório do Momofuku atuava no ingrediente, impedindo que o micróbio usado no peixe no Japão tivesse o mesmo efeito em Nova York.
Os pesquisadores, então, chegaram a outro fungo capaz de produzir o sabor esperado: o Aspergillus orzyae. O resultado foi divulgado no International Journal of Gastronomy and Food Science, publicação para disseminação de artigos científicos de chefs e pesquisadores da gastronomia lançada no ano passado.
Mas uma das maiores conclusões dos cientistas com o experimento é de que existe uma espécie de “terroir microbiano”. Assim como os minerais e seres vivos invisíveis a olho nu em uma terra influenciam o sabor dos alimentos plantados nela, os micro-organismos no ambiente interferem no gosto de um ingrediente processado ali. A revelação abriu um novo precedente para a gastronomia: aproveitar a ação de micro-organismos locais para criar os já tão valorizados sabores nativos, impossíveis de serem reproduzidos em outros cantos do mundo. A carne de porco defumada no Momofuku seria um deles. Mas há chefs que preferem importar sabores tradicionais e reinventá-los em novas combinações.
DE LONGE
COZINHA GEEK: Daniel Felder, chefe de pesquisa do laboratório anexo ao badalado restaurante Momofuko, de Nova York
Em abril, o chef Andoni Luis Aduriz abriu as portas para a temporada de 2013 de seu restaurante Mugaritz, em Errentería, no País Basco. A casa havia ficado fechada por três meses, tempo em que o chef se dedicou a pesquisas em sua cozinha experimental e nos laboratórios do AZTI-Tecnalia, centro basco de estudos relacionados à alimentação e ao ecossistema marinho, do qual é um dos integrantes.
Como resultado das experiências, um prato que entrou no menu da casa foi a Mecha de alga pelo, uma espécie de bactéria marinha que realiza fotossíntese (o que a leva a ser confundida e popularmente chamada de alga) servida com pasta de azeitonas.
Anduriz experimentou o ingrediente em uma sopa durante uma viagem à China. Conhecida por lá como Fat Choy, essa bactéria — usada na gastronomia chinesa e vietnamita como vegetal — tem aparência de um cabelo liso e preto. Instigado, o chef encontrou um distribuidor da iguaria em Paris e encomendou uma quantidade para fazer alguns experimentos. Primeiro testou cozinhá-la e desidratá-la para ressaltar seu aspecto de pelo, mas as fibras se desfaziam.
Para encontrar a melhor maneira de preparar o que até então Aduriz acreditava ser uma alga, o chef pediu para que os botânicos e biólogos que trabalham em seu próprio restaurante e no laboratório Azti tentassem identificá-lo. O material foi categorizado como Nostoc flagelliforme, uma cianobactéria (bactéria que faz fotossíntese) autônoma que se agrupa em colônias. Diante da nova informação, foi possível desidratar o ingrediente e fritá-lo em baixa temperatura e a vácuo, sem queimá-lo, como estava acontecendo antes (em viagem à Espanha, o repórter teve oportunidade de provar o prato e achou uma delícia).
SABOR NACIONAL
No Brasil, a microbiologia aplicada à cozinha ainda é feita de maneira mais empírica e pouco científica. Mas, em breve, isso pode mudar. No segundo semestre de 2013, os chefs e irmãos Thiago e Felipe Castanho, dos restaurantes Remanso do Bosque e Remanso do Peixe, em Belém do Pará, devem abrir um laboratório onde irão testar processos de maturação e fermentação de ingredientes tomando como base os conhecimentos culinários tradicionais da região. “A fermentação surgiu como um processo de conservação, depois foi ficando marcada na memória genética e gustativa das pessoas”, afirma Thiago, que mantém parcerias com a Embrapa para estudar ingredientes locais e seus processos de fermentação e maturação.
Em seus restaurantes, os chefs já usam o fruto da pupunha fermentado para fazer cerveja e vinagre inspirados na caiçuma, bebida alcoólica preparada com palmito por índios da região. Agora, pretendem estudar pratos como a puba (massa da mandioca fermentada), o aluá (tipo de refrigerante feito a partir da fermentação do milho) e tarubá (bebida feita com a raiz da mandioca). A ideia é valorizar o “terroir microbiano” da Amazônia. “Estamos pesquisando esses processos para resgatar essas receitas e desenvolver novas”, diz Thiago.
Quando aberto, o laboratório dos irmãos Castanho será mais uma demonstração de como fungos e bactérias podem ser usados para reinventar a gastronomia, o que já vem sendo mostrado em alguns dos mais estrelados restaurantes internacionais. “Chefs estão sempre buscando novas formas de criar sabores. E os micróbios os têm produzido em diversas comidas há centenas de anos, alheios a nosso conhecimento sobre eles”, afirma Wolfe, de Harvard. “Agora nós, cientistas, vamos ajudar a usar esses micro-organismos como ingredientes imprescindíveis das receitas que queremos ver nos grandes restaurantes.” Ver e, claro, comer.